quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Só não conseguia livrar-se do medo das mulheres...

Faces
Ele as desejava, mas elas o amendrontavam. Entre o medo e o desejo era preciso encontrar um meio-termo; era o que ele chamava "a amizade erótica". Afirmava a suas amantes: só uma relação isenta de sentimentalismo, em que nenhum dos parceiros se arrogue direitos sobre a vida e a liberdade do outro, pode trazer felicidade para ambos.

Milan Kundera, in: A Insustentável Leveza do Ser. Ed. Círculo do Livro

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Barcos

Dormem na praia os barcos pescadores
Imóveis mas abrindo
Os seus olhos de estátua

E a curva do seu bico
Rói a solidão.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Coral, 1950. / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras

Doze moradas de silêncio

Eva Armisen
hoje é dia de coisas simples
(Ai de mim! Que desgraça!
O creme de terra não voltará a aparecer!)
coisas simples como ir contigo ao restaurante
ler o horóscopo e os pequenos escândalos
folhear revistas pornográficas e
demorarmo-nos dentro da banheira

na ladeia pouco há a fazer
falaremos do tempo com os olhos presos dentro das chávenas
inventaremos palavras cruzadas na areia... jogos
e murmúrios de dedos por baixo da mesa
beberemos café
sorriremos à pessoas e às coisas
caminharemos lado a lado os ombros tocando-se
(se estivesses aqui!)
em silêncio olharíamos a foz do rio
e o brincar agitado do sol nas mãos das crianças descalças
hoje.

Al Berto, in: Salsugem

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Promessa

És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Dia do Mar, 1947. / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras

as memórias poéticas

Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças
[...] Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida [...]

*

[...] Já disse que as metáforas são perigosas. O amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética.

Milan Kundera, in: A Insustentável Leveza do Ser. Ed. Círculo do Livro

domingo, 27 de novembro de 2011

Na berlinda, o coração

Há momentos em que tudo o que a gente precisa é dar colo para o próprio coração. Aconchegá-lo. Deixar que perceba que naquele instante todas as outras coisas podem nos esperar um pouco; ele, não. Ele é o nosso rei e o nosso reino. O papel para desenho e a caixa de lápis de cor. A música e a orquestra.

Nossa bússola e nosso mar. A flor, o pólen, a borboleta, ao mesmo tempo. A colméia e o mel. O centro onde tudo principia e para o qual tudo converge. Ele não pode esperar.

O coração da gente gosta de atenção. De cuidados cotidianos. De mimos repentinos. De ser alimentado com iguarias finas, como a beleza, o riso, o afeto. Gosta quando espalhamos os seus brinquedos no chão e sentamos com ele para brincar. E há momentos em que tudo o que ele precisa é que preparemos banhos de imersão na quietude para lavarmos, uma a uma, as partes que lhe doem. É que o levemos para revisitar, na memória, instantes ensolarados de amor capazes de ajudá-lo a mudar a frequência do sentimento. Há momentos em que tudo o que precisa é que reservemos algum tempo a sós com ele para desapertá-lo com toda a delicadeza possível.

Ana Jácomo

sábado, 26 de novembro de 2011

SIMULACRO DE UMA SOLIDÃO

Katia Chausheva

5 de agosto

Ainda não consegui fazer filosofia, versos, ou colar retratos aqui.

Ana Cristina Cesar, in: 26 Poetas Hoje. Org. Heloísa Buarque Hollanda. Ed. Aeroplano

... edifício.

Faces
[...] Mas o frágil edifício do amor deles seria inevitavelmente destruído, já que esse edifício se assentava sobre uma única pilastra - a de sua fidelidade -, e os amores são como os impérios: desaparecendo a ideia sobre a qual foram construídos, morrem junto com ela.

Milan Kundera, in: A Insustentável Leveza do Ser. Ed. Círculo do Livro

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Cortejo

Tendo estado
toda uma tarde
ouvindo
um tempo branco
sentindo dedos de água
descidos da noite.
Figuras
surgem paralelas
como saídas agora
da cal da parede.
Ali onde a sombra joga
na brisa de outra água.
De perto,
a superfície do muro
pára:
distração.

Vera Pedrosa, in: 26 Poetas Hoje. Org. Heloísa Buarque Hollanda. Ed. Aeroplano

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

ausência

o sol se nega a sair
e não venta

há dias fico à sombra
mofando idéias úmidas
e desculpas idem
penduradas no cabide

Valéria Tarelho

terça-feira, 22 de novembro de 2011

.

Nonnetta
[...] O amor não é talvez mais do que a propagação daqueles redemoinhos que, depois de uma emoção, perturbam a alma.

Marcel Proust, in: Em Busca do Tempo Perdido / Vol. 5 - A Prisioneira. Tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar. Ed. Globo

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Nuvens

Caminhar em nuvens
é o mais lento
e duro aprendizado:
há que esquecer
todo o peso
terrestre
e transformar pedras
em luz,
palavras em estrelas.

Caminhar em nuvens
é árduo ofício:
há que pintar as mãos
e os gestos de azul
e oferecer ao outro
o mapa da delicadeza.

Roseana Murray, in: Manual da Delicadeza de A a Z

domingo, 20 de novembro de 2011

texana

Egon Schiele
ela é do Texas e pesa
47 quilos
e para em frente ao
espelho penteando oceanos
de cabelos ruivos
que descem ao longo de todas
suas costas até a bunda.
o cabelo é mágico e lança
faíscas quando me deito na cama
e a vejo penteá-los.
ela parece uma criatura
saída de um filme mas está
aqui de fato. fazemos amor
pelo menos uma vez por dia e
ela consegue me fazer rir
sempre que deseja.
as mulheres do Texas são sempre
saudáveis e, além disso, ela
limpa meu refrigerador, minha pia,
o banheiro, e faz comida e
me serve alimentos saudáveis
e lava os pratos
também.

‘‘Hank’’, ela me disse
segurando uma lata de suco
de uva, ‘‘este é o melhor de
todos’’.
dizia na lata: suco natural de uva
ROSA do Texas.

ela se parece com Katherine Hepburn
na época
do ensino médio, e vejo esses
47 quilos
penteando um metro
de cabelo ruivo
diante do espelho
e a sinto dentro de meus
pulsos, e no fundo de meus olhos,
e os dedos e as pernas e a barriga
a sentem, assim como
aquela outra parte,
e toda Los Angeles se desfaz
e chora de contentamento,
as paredes das alcovas tremem –
o oceano invade tudo e ela se vira
e me diz, “maldito cabelo!”
e eu digo,
“sim”.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

sábado, 19 de novembro de 2011

.

Nonnetta
[...] O amor pode nascer de uma simples metáfora.

Milan Kundera, in: A Insustentável Leveza do Ser. Ed. Círculo do Livro

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Álgebra

Os Sonhadores
No triângulo amoroso
o círculo tende a vicioso.

Cacaso, in: Mar de Mineiro: poemas e canções

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O esmagamento das gotas

Eu não sei, olhe, é terrível como chove. Chove o tempo todo, lá fora fechado e cinza, aqui contra a sacada com gotões coalhados e duros que fazem plaf e se esmagam como bofetadas um atrás do outro, que tédio. Agora aparece a gotinha no alto da esquadria da janela, fica tremelicando contra o céu que esmigalha em mil brilhos apagados, vai crescendo e balouça, já vai cair e não cai, não cai ainda. Está segura com todas as unhas, não quer cair e se vê que ela se agarra com os dentes enquanto lhe cresce a barriga, já é uma gotona que pende majestosa e de repente zup, lá vai ela, plaf, desmanchada, nada, uma viscosidade no mármore.

Mas há as que se suicidam e logo se entregam, brotam na esquadria e de lá mesmo se jogam, parece-me ver a vibração do salto, suas perninhas desprendendo-se e o grito que as embriaga nesse nada do cair e aniquilar-se. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adeus gotas. Adeus.

Julio Cortázar, in: Histórias de Cronópios e de Famas. Tradução de Gloria Rodríguez. Ed. Civilização Brasileira

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

.

Rachel Caiano

meus pensamentos
cruzam os teus
como aviões no ar

da janela
os corações acenam
sem saber se vão voltar

Alice Ruiz

terça-feira, 15 de novembro de 2011

27 de outubro,

Isabel de Sá

Por vezes sinto vontade de rasgar-me o peito, de partir-me o crânio, ao ver de quão pouco somos capazes uns em relação aos outros. Ah, o amor, a alegria, o ardor, as delícias que não alcanço por mim, não mas dará outro, e, com o coração a transbordar de venturas, não poderia tornar feliz a este mesmo outro ao vê-lo frio e sem forças diante de mim.

Johann Wolfgang Goethe, in: Os Sofrimentos do Jovem Werther. Tradução de Marcelo Backes. Ed. L&PM

domingo, 13 de novembro de 2011

. . . perto do coração.

Em 6/7/1946

Clarice, sua carta chegou como uma ventania: eu estava organizando uns formulários, pilhas de papéis em cima da mesa quando o contínuo se aproximou segurando uma carta para mim. Largou-a na minha frente, os papéis voaram. Olhei o remetente: Seminartrasse! Fiquei idiota. [...] Mas essas coisas costumam acontecer. [...] Atravessei um período duro, Clarice. Também precisei de uma palavra amiga. [...] Como você vê, não posso te mandar nenhuma palavra animadora. [...] Gostei muito da sua carta, me deu muita alegria.

Em 27/7/1946

Fernando, deixei de responder logo à sua carta porque exatamente estava em período agudo de precisar receber e não de escrever. Ainda estou assim, mas hoje é domingo de manhã, está chovendo e tudo está escuro; [...] Na sua carta tão boa para mim, você diz que não pode dar nenhuma palavra animadora, e, no entanto, vieram muitas, veio uma carta inteira delas. Uma carta que me sacudiu um pouco.

Clarice Lispector e Fernando Sabino, in: Cartas Perto do Coração. Ed. Record

Agosto - III

uma janela entreaberta,

o olhar.

vejo-te.

quero dizer-te que.


teus dedos longos,

pontas da cortina —


vez em quando o vento

se desculpa,


se ajoelha diante

do rosto,

dos cabelos.


tocas a vidraça da minha boca.

Marceli Andresa Becker, in: Do Meu Caderno de Experimentações

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

. . . pingos da chuva.

7.
Uma chuva é íntima
Se o homem a vê de uma parede umedecida de moscas;
Se aparecem besouros nas folhagens;
Se as lagartixas se fixam nos espelhos;
Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores;
E o escuro se umedeça em nosso corpo.

Manoel de Barros, in: O Guardador de Águas. Ed. Record

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Katia Chausheva


Memoria iluminada, galería donde vaga la sombra de lo que espero.
No es verdad que vendrá. No es verdad que no vendrá.

Alejandra Pizarnik, in: Árbol de Diana, 1962. Poesía Completa. Ed. Lumen

terça-feira, 8 de novembro de 2011

QUANDO ERA MENINO

Nelo meu filho dizia: a Terra é redonda
e achatada nas pontas, como uma laranja. Eu quero é rodar.
E eu disse: ninguém pode dizer uma coisa dessas. Ninguém
sabe de que jeito é o mundo.
Nelo meu filho dizia:
O homem precisa ser vivo.
E eu disse: - Mas, agora. Então não está todo mundo
vivo? Eu estou vivo.
Ele disse:
É preciso ser vivo para viver.
Ele disse:
O mundo é um carro de boi, que vai rodando para a
frente, gemendo em cima de um eixo.
Eu disse:
O mundo não tem eixo. Ele está parado, nas mãos de Deus.
Ele disse:
A Terra gira.
Eu disse:
Se girasse, a gente caía no chão.
Ele disse:
A Terra gira muito depressa. É por isso que não caímos.
Eu disse:
Se o mundo girasse, todo mundo ficava tonto.
Pensei: a Terra gira como a mão de mamãe, girando a colher de pau dentro do tacho, para fazer sabão. Soda cáustica e água. Sabão serve para lavar a roupa. O que é que serve para lavar a alma?

Antônio Torres, in: Essa Terra. Ed. Record

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Coisas concretas

Estou sentada na cozinha, enquanto a massa ferve.

Amo as coisas concretas
descobrir seus nomes ao pequeno-almoço:
despertador, chuva na calçada, supermercado,
beijos na siesta,
um copo de vinho, amigos,
as pequenas mãos de meu filho,
pessoas na praça,
tu...

Elas produzem as mais doces e lânguidas cócegas,
como um banquete após o jejum.
Parece-me impossível afastar-me de tais coisas:
colam-se à minha caneta e parece que não consigo sacudi-las.

No entanto,
as coisas concretas não permitem atrasos,
e a massa já está pronta.
Assim é a vida.
Quando o semear do poema começava a germinar,
eis que o mundano vem intrometer-se.
E lá tenho eu que me levantar da mesa,
enquanto a sombra de um bilioso humor assenta.

Miren Agur Meabe / Tradução de Amaia Gabantxo - Poesia & Lda

Madrugada

Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite

a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes

Ferreira Gullar, in: Dentro da Noite Veloz / abril 1971

domingo, 6 de novembro de 2011

definições :

CHÃO
fala fósseis sol
facho
farpa fogo
arco-sombra
faca jardim archote
folha ou boca
flama
gasto em vão

Ferreira Gullar, in: Dentro da Noite Veloz / O Vil Metal 1954 - 1960

mar azul

mar azul marco azul
mar azul marco azul barco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul

Ferreira Gullar, in: Dentro da Noite Veloz / O Vil Metal 1954 - 1960

sábado, 5 de novembro de 2011

21 de agosto,

Piotr Rosinski
Em vão estendo meus braços para ela, de manhã, ao despertar de um penoso sonho; em vão a procuro à noite em minha cama, quando um devaneio feliz e puro me iludiu, quando julgava estar sentado ao lado dela na relva, e lhe pegava na mão cobrindo-a de mil beijos.

Ah, quando, ainda meio tonto de sono, a procuro e a seguir desperto, uma torrente de lágrimas brota do meu coração e choro, desolado com o futuro sombrio a minha frente!

Johann Wolfgang Goethe, in: Os Sofrimentos do Jovem Werther. Tradução de Marcelo Backes. Ed. L&PM

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

...


[...] Queremos o que não podemos ter, diz o professor Schianberg, o mais obscuro filósofos do amor. É normal, saudável. O que diferencia uma pessoa de outra, ele acrescenta, é o quanto cada um quer o que não pode ter. Nossa ração de poeira das estrelas.

Marçal Aquino, in: Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios. Ed. Compahia das Letras

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Escombros de Paris

Canções de Amor
Cheguei cheia de vida.
Vinha saudosa e estremecida.
Trazia-te duas flores
Eram jasmins-do-cabo.
Puseste-as num copo azul
Cheio pela metade.
Pedi-te:
Fica ao meu lado.
Mas tu corrias pela casa
Atento a providências mil.
Na cena preparada
Quartetos de Beethoven
Portas abertas
A gata que pulava.
Uma cozinha
A todo vapor funcionava.
Sob um epíteto qualquer
Eu me esvaía.
E quando por fim
Tiraste do bolso
Aquele lenço negro
Comprado em Paris
Embebi-me toda
Nos signos da morte
E também morri.

Judith Grossmann, in: Vária Navegação: mostra de poesia. Ed. Fundação Casa de Jorge Amado

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Girassol

Aquele girassol no jardim público de Palmira.
Ias de auto para Juiz de Fora; a gasolina acabara;
havia um salão de barbeiro; um fotógrafo; uma igreja; um menino
[parado;
havia também (entre vários) um girassol. A moça passou.
Entre os seios e o girassol tua vontade ficou interdita.
Vontade garota de voar, de amar, de ser feliz, de viajar, de casar, de
[ter muitos filhos;
vontade de tirar retrato com aquela moça, de praticar libidinagens,
[de ser infeliz e rezar;
muitas vontades; a moça nem desconfiou...
Entrou pela porta da igreja, saiu pela porta dos sonhos.

O girassol, estúpido, continuou a funcionar.

Carlos Drummond de Andrade, in: Brejo das Almas. Ed. Record

terça-feira, 1 de novembro de 2011

4. Folhas secas me outonam.

(Folhas secas que
forram o chão das tardes me trasmudaram
para outono? Eu sou meu outono.)

Gosto de viajar por palavras do que de trem.

Manoel de Barros, in: Retrato do Artista Quando Coisa. Ed. Record